14 outubro 2014

A trajetória do futebol brasileiro como manifestação das massas e espaço de ascensão dos subalternos



Crítica ao modelo de futebol imposto pelas organizações gestoras transformam o esporte do povo em entretenimento
Por Valdemar Valente Junior
Futebol:  do popular ao entretenimento,  modelo
NBA
Este artigo tem o objetivo de definir o espaço de atuação das camadas subalternas como agentes de transformações sociais no Brasil tendo no futebol uma referência. A prática do futebol pelas elites econômicas, que o trouxeram da Inglaterra, em poucas décadas tem sua passagem franqueada ao imaginário do proletariado que nele encontra um efetivo espaço de ascensão social. Essa condição era impossível de ser alcançada pelas configurações tradicionais do trabalho. A abordagem estende-se à projeção popular de alguns dos principais jogadores brasileiros, ao período de duas décadas sem títulos mundiais, às contradições do capitalismo na sociedade bra- sileira e à atual inserção internacional do futebol como material de extremo valor de mercadoria.
palavras-chave: Futebol brasileiro; proletariado; cultura de massa; globalização.





gênese do futebol no brasil
A afirmação do futebol no Brasil como resultado das viagens dos filhos das eli- tes brancas à Europa, especificamente à Inglaterra, encontra, quando de retorno, a inversão do lugar que em pouco tempo caracterizará o predomínio dos subalter- nos, no que tange ao contato com a bola e ao manejo original do jogo nas quatro linhas do campo. A conhecida relação dos jovens bem nascidos com a novidade do esporte bretão, que agrega uma assistência composta pela fina flor da sociedade, não apenas no Rio de Janeiro e em São Paulo, mas em diversos centros do país, é um fato inegável. Clubes tradicionais como o Fluminense e o Paulistano alinham em suas fileiras os membros da classe alta que, pouco a pouco, acabam cedendo espa- ços ao proletariado em formação. Este passa à condição de portador de uma nova dimensão da disputa, tendendo a deixar de lado o fair-play do jogo aristocrático para incorporar ao inconsciente coletivo a feição multitudinária do esporte, em sua irreversível situação de conquista de expressivos espaços no sentimento do povo brasileiro. Por conta disso, o futebol encontra nos subalternos um sentido e uma forma de manifestação que o situa como símbolo da presença brasileira no mundo.


A prática esportiva, no entanto, divide as opiniões, quando em sua origem brasileira a crônica literária ocupa lados opostos. Os dois lados dizem respeito à afirmação de seu caráter apolíneo em oposição ao índice de violência como manifestação das massas. Desse modo, efetiva-se a nítida distinção da presença do esporte nos campos dos subúrbios e nos fields da Zonal Sul carioca. A atividade esportiva é vista pelas elites como em seu aspecto regenerativo, concorrendo para a formação das novas gerações. Por isso, o que até então representava uma preo- cupação para as famílias, quando seus filhos participavam de regatas ou portavam halteres, com o advento do futebol, passa a ser motivo de júbilo. Na crônica "Hora de futebol", João do Rio exalta a chegada do esporte como elemento capaz de arre- batar multidões, arrancando do sedentarismo legiões de jovens de pince-nez, a dis- cutir literatura, que passam a dar pontapés em uma bola de couro:
Não! Há de fato uma coisa séria para o carioca – o futebol! Tenho assistido a meetings colossais em diversos países, mergulhei no povo de diversos países, nessas gran- des festas de saúde, de força e de ar. Mas absolutamente nunca eu vi o fogo, o entu- siasmo, a ebriez da multidão assim. Só pensando em antigas leituras, só recordando o Colosseum de Roma e o Hipódromo de Bizâncio.
O campo do Flamengo é enorme. Da arquibancada eu via o outro lado, o das gerais, apinhado de gente, a gritar, a mover-se, a sacudir os chapéus. Essa gente subia para a esquerda, pedreira acima, enegrecendo a rocha viva. Embaixo a mesma massa com- pacta. E a arquibancada – o lugar dos patrícios no circo romano, era uma colossal, formidável corbelha de belezas vivas, de meninas que pereciam querer atirar-se e gri- tavam o nome dos jogadores, de senhoras pálidas de entusiasmo, entre cavalheiros como tontos de perfume e também de entusiasmo. (RIO, 1971, p. 61-62)
A crônica envolve o jogo disputado entre o Flamengo e o Fluminense, que congrega enorme contingente de torcedores. Aliás, a expressão que caracteriza a preferência pessoal por determinada equipe vem do fato de que as moças e os rapazes presentes no campo de jogo literalmente torciam a manga dos vestidos ou a palheta dos chapéus, em manifestação de nervosismo e êxtase. A visão do cronista recai sobre o futebol como espaço de fruição das elites, constando na crô- nica a lista de nomes das figuras do high-life carioca, o que caracteriza um tipo de 96 colunismo social. A novidade do futebol preenche os espaços de lazer da cidade a partir de um público burguês que comparece ao field da rua Paissandu. Assim, se João do Rio exalta o futebol como a nova sensação capaz de comover o espírito e incendiar a paixão, na medida do valor afirmativo que do esporte emana, Lima Barreto, anos mais tarde, na crônica "O football", reitera a abominação e o des- prezo que sente por esse esporte como explícito sinônimo de barbárie:
Não é possível deixar de falar no tal esporte que dizem ser bretão.
Todo dia e toda hora ele enche o noticiário dos jornais com notas de malefícios, e mais do que isto, de assassinatos. Não é possível que as autoridades policiais não vejam semelhante coisa.
O Rio de Janeiro é uma cidade civilizada e não pode estar entregue a certa malta de desordeiros que se querem intitular
sportmen.
Os apostadores de brigas de galos portam-se muito melhor. Entre eles, não há ques- tões, nem rolos. As apostas correm em paz e a polícia não tem que fazer com elas; entretanto, os tais
footballers todos os domingos fazem rolos e barulhos e a polícia passa-lhes a mão pela cabeça.
Tudo tem um limite e o
football não goza do privilégio de coisa inteligente. (BARRETO, 1956, p. 153)
Os argumentos vão de encontro à ideia do esporte bretão como forma de inte- gração e saúde corporal, vendo-o apenas em seu sentido desagregador. Divisões à parte, o futebol brasileiro segue seu curso de incorporação dos elementos das camadas subalternas à condição de ídolos do grande público. Mesmo antes da profissionalização do futebol, o Vasco da Gama faz com que as autoridades espor- tivas do Rio de Janeiro revejam posições com relação a negros, pobres e analfabe- tos. Desse modo, torna-se imprescindível contar com esse contingente de reserva social que assume posição definida no plano de importância que o esporte passa a representar. Antes, na ausência de vinte e dois jogadores brancos, reunidos em torno dos ingleses que capitaneavam a indústria de tecidos no subúrbio carioca, os empregados negros enxertavam lacunas, dando à equipe a configuração do que passa a ser o futebol entre nós. Todavia, não se trata mais de preencher lugares no time dos patrões, mas de assumir posições de destaque como parte integrante e definitiva da disputa esportiva, até então destinada ao lazer das elites brancas.
A conquista do Campeonato Sul-Americano pela seleção brasileira, quando pontificou a figura de Friedenreich, nosso primeiro ídolo negro, na vitória contra o Uruguai, em 1919, representou um significativo avanço à internacionalização do futebol brasileiro. Do mesmo modo, na campanha vitoriosa do Paulistano por gra- mados europeus, conhecida através do poema "A Europa curvou-se ante o Brasil", de Oswald de Andrade (1972, p. 62), a imprensa francesa denominou a equipe brasileira de Les rois du football. Pode-se considerar o Paulistano como pioneiro, por abrir as portas da Europa ao futebol brasileiro, tanto que nos anos trinta jogadores brasileiros foram para lá jogar. Houve o caso de Filó, que defendeu a Itália na Copa do Mundo de 1934, sagrando-se campeão mundial. Por sua vez, com a chegada do profissionalismo o clube afastou-se das disputas. Tratava-se de uma estrutura mantida pelo baronato paulista que não se adequou à dinâmica de inserção do futebol no mercado de trabalho. Por isso, nas duas primeiras copas do mundo, a resistência dos paulistas à profissionalização do futebol impediu que a seleção nacional contasse com alguns de seus melhores jogadores:
[...] Muitos homens de cor, de antemão desencorajados pela dificuldade da ascensão, tornados interiormente incapazes de enfrentar as exigências da vida, viram sua hora chegar. Daí a seriedade com que jogavam, com que punham tudo no jogo: este tornou- se, como a embriaguez do álcool e da dança, um caminho de fuga, certamente um caminho que parecia ir para cima. Apenas poucas décadas antes havia sido abolido o sistema de escravidão. Ainda aderia uma mancha a qualquer trabalho manual. Dar pontapés numa bola era um ato de emancipação. De repente o próprio jogo tornou-se para eles um trabalho, e pôde igualmente relacionar-se com a emancipação dos escra- vos – num país que nunca teve o equilíbrio de uma ética puritana do trabalho – o fato de que, por outro lado, muitas vezes também o trabalho foi realizado como se fosse um jogo. (ROSENFELD, 2007, p. 85)
A relação do futebol com um público cada vez mais amplo prepara as con- dições de sua inserção como produto cultural altamente rentável. Amplia-se a dimensão participativa do jogo das quatro linhas na direção das camadas popula- res. Opera-se uma mudança significativa na relação que o futebol assume no con- junto da sociedade, abrindo-se progressivamente ao âmbito de diferentes setores. Ao prefaciar o romance A infância de Portinari, de Mário Filho, Nelson Rodrigues relata o papel relevante de seu irmão como cronista desportivo, quando "Mesmo os melhores jornalistas escreviam de fraque. No teatro, Leopoldo Froes falava com sotaque lisboeta. E a simplicidade seria uma degradação para qualquer jornal". (RODRIGUES, 1966, p. 8). Segundo Nelson, até a chegada de Mário Filho a imprensa reproduzia o discurso das elites conservadoras, a partir de uma linguagem restrita ao modus operandi privilegiado da camada letrada. Por sua vez, a atuação do autor de O sapo de Arubinha revoluciona a linguagem esportiva trazendo o futebol para as hostes do povo, que passa a fruir dele em dimensão até então impensável. As matérias de jornal começam a servir-se da fotografia no sentido mais amplo do que isso pode representar. Assim, o futebol, até então relegado a uma reles coluna de canto de página, ganha a dimensão de matéria de meia página, quando não de página inteira, nas publicações especializadas.
profissionalismo e ascensão social
A rentabilidade dos jogos aumenta o enfoque que dela decorre em face da profis- sionalização. Além disso, o futebol incorpora-se a um pacote que se agrega ao car- naval e ao samba como partes expressivas de um novo conceito de cultura popular que tem efeito a partir da chamada Era Vargas. Esse período de repressão política e abertura econômica, representado pelo fim da alternância no poder das oligar- quias rurais, sugere a percepção da importância que o futebol possui como matéria prima capaz de auferir resultados expressivos para o sistema político, na medida em que, ao promover simbolicamente os subalternos, faz com que sua participação seja blindada no que tange às decisões em outras esferas de representação. Assim, o futebol e a música popular expressam o virtuosismo das camadas excluídas, levan- do-as a crer em uma possibilidade de ascensão, o que as exclui, todavia, do apro- fundamento de discussões mais prementes, sobretudo, no plano social. Durante o Estado Novo, especificamente, o futebol incorpora-se de maneira definida ao pro- jeto oficial, que se utiliza de sua força como veículo de manipulação das massas:
Creio que é por possibilitar essa dialética de individualização e coletivização, que o futebol permite exprimir no caso brasileiro o importante conflito entre "destino" impessoal e vontade individual. Sendo assim, são muitos os jogos de futebol que, no Brasil, permitem sua "leitura" enquanto paradigmas de um combate entre forças cole- tivas e impessoais (do destino) e as vontades individuais que buscam escapar do ciclo da derrota e da pobreza. Creio que esse é um importante dilema da sociedade brasileira que o jogo de futebol, ou melhor; que o futebol enquanto jogo permite colocar em foco como uma dramatização muito popular. (DAMATTA, 1982, p. 27)
As circunstâncias políticas nesse período configuram o prestígio de alguns dos mais representativos ídolos do futebol como esporte brasileiro por excelên- cia. Em que pese sua origem britânica, o Brasil inicia um processo de configu- ração do estilo de jogo que lhe passa à condição de propriedade, garantindo a hegemonia de uma escola que por muito tempo é referência mundial. O estí- mulo ao surgimento e à consolidação dessa superioridade corresponde à con- firmação, no âmbito de imaginário popular, de personalidades como Fausto dos Santos, A Maravilha Negra, Domingos da Guia, O Divino Mestre, e Leônidas da Silva, O Diamante Negro. Alçados à popularidade conferida pelo estímulo que o Estado fomenta, na condição de espelho das massas, esses jogadores, sobre- tudo, o último, apontam a direção a ser seguida pelos subalternos, na busca por um espaço possível de negociação com vistas a um lugar de reconhecimento. Oriundos de clubes pequenos, São Cristóvão, Bangu e Bonsucesso, os três gran- des jogadores encontram a consagração no Flamengo, que por esse tempo ratifica seu lugar de equipe mais popular do país, a partir de enquetes promovidas pela imprensa. Fausto dos Santos morre tuberculoso, mas os outros dois con- firmam-se como ídolos das grandes massas, tendo posto cativo na galeria das estrelas de primeira grandeza do futebol brasileiro:
O sucesso de Domingos e Leônidas "nas canchas do mundo" era, para governantes e ideólogos, no fim dos anos 30, a prova da existência da chamada democracia racial no Brasil. E implícita, a suposta ausência de racismo no país. Foi neste ambiente que um chargista carioca desenhou Domingos ao lado de Hitler, depois do 6 x 5 contra a Polônia. (HAMILTON, 2005, p. 258)
Ou ainda:
Parece exagero, mas a atuação de Leônidas foi semelhante à de Romário na Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos, quando o baixinho ganhou praticamente sozinho todos os jogos. Em 1938, foi um negro, de nariz arrebitado, quem encantou o mundo com seus gols e suas jogadas espetaculares. (RIBEIRO, 1999, p. 87)
A campanha do Brasil na Copa do Mundo de 1938, disputada na França, concorre para que se consagre definitivamente o estilo brasileiro. O jogo contra a Itália, pelas semifinais, apesar da frustração pela derrota, ratificou o brilhantismo de craques definitivos. Ainda que derrotada, a equipe brasileira saiu vencedora, na medida em que se afirma nesse momento um sentido de brasilidade que corres- ponde à expectativa que o futebol desperta como fator de integração e sentimento de orgulho nacional. Em plena vigência do Estado Novo, o desempenho brasileiro em gramados franceses repercute como epopeia, justificando-se a eliminação no erro da arbitragem, que assinalou um pênalti quando a bola encontrava-se fora das quatro linhas. A energia positiva catalisada pela campanha brasileira aliou-se à disseminação definitiva do futebol como produto de massas que passou a interes- sar de maneira inegável à indústria cultural. O sucesso de Leônidas da Silva, aliado a seu imenso carisma, fizeram dele o garoto-propaganda de produtos que se agre- garam ao futebol. Além disso, a música popular cita seu nome por repetidas vezes.
O samba curiosamente intitulado Doutor em futebol (PUJOL, Waldemar e BERNARDINO, Moacir), gravado por Moreira da Silva, em 1941, deixa clara a opção que se configura no futebol como possibilidade de ascensão. Por isso, torna-se dispensável o diploma de doutor em medicina, na medida em que a dedicação ao futebol pode conferir cartaz aos artistas da bola. Os meios de acesso ao reconhe- cimento e à notoriedade alcançada pelos ídolos do futebol deixam de conside- rar a necessidade dos estudos, na medida em que essa nova categoria usufrui de fama e prestígio junto às massas. Para José Miguel Wisnik, "no samba e no futebol, negros, brancos e mulatos, habitando uma certa zona de intermediação criada pela
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herança da escravidão, lidam com a prontidão e outras bossas..." (WISNIK, 2008, p. 406). Por essa via, percebe-se claramente o espaço de inserção que o capitalismo em sua feição moderna sugere como sucedâneo à exclusão inerente às camadas baixas no âmbito de um sistema mais abrangente. A prática diletante do futebol pelas elites, pelos doutores de fato, dá lugar à inserção de cunho profissional pela emergência dos subalternos. Estes assumem através do futebol uma nova possi- bilidade de competir em plano de igualdade com as camadas sociais que tradi- cionalmente ascendem pelo mérito do saber. Ser jogador de futebol passa a ser em muitos casos o meio pelo qual a notoriedade atinge o cerne de conquistas do indivíduo excluído.
No livro clássico O negro no futebol brasileiro, é abordado o lugar de cele- bridade que Leônidas da Silva assumiu dentro e fora dos gramados. O Diamante Negro destacava-se aonde chegasse, chamando a atenção pela elegância no traje e nos modos. "Leônidas descobrira um veio de ouro. Queria viver assim, inaugu- rando sapatarias, fazendo conferências." (MÁRIO FILHO, 1964, p. 250). Depois de seu surgimento no Bonsucesso, as passagens pelo Vasco da Gama e, sobretudo, pelo Botafogo, segundo o próprio Mário Filho, foram quase despercebidas, por ser praticamente o único jogador negro da equipe. No Flamengo, no entanto, ao lado de tantos outros negros e mulatos contribui para que o rubro-negro pontifique na preferência do torcedor brasileiro. A ascensão desse grande ídolo representa uma marca decisiva de reconhecimento do subalterno, concorrendo de algum modo para o esgarçamento da fronteira social que se impõe. Depois da passagem triunfal pelo Flamengo, repentinamente entra em litígio com o clube, que queria obrigá-lo a jogar lesionado, sendo chamado de mercenário por parte da torcida e da imprensa. Negociado com o São Paulo, na maior transação do futebol à época, ainda consegue por alguns anos reproduzir no clube paulista, onde encerra a car- reira, o talento e o virtuosismo que o elegeram entre os maiores jogadores brasilei- ros de todos os tempos.
Ainda segundo Mário Filho, outra categoria de celebridade se impõe apenas dentro dos gramados, como no exemplo de Domingos da Guia. De personalidade avessa à exposição e à publicidade pessoal, o zagueiro de estilo elegante e jogadas impecáveis, que arrancava aplausos efusivos das arquibancadas, era um ídolo arre- dio. Viajava de trem e de bonde, deslocando-se de Bangu, no subúrbio, onde resi- dia, até os treinos do Flamengo, na Gávea, na Zona Sul. Desse modo, os holofotes da imprensa não tinham nele o ídolo capaz de estender sua participação para além dos jogos. Com isso, verifica-se que a popularidade distancia-se do que represen- tava a integração plena do atleta às exigências da indústria cultural como expressão máxima da incorporação do futebol pela máquina capitalista. Os espaços antes destinados ao amadorismo assumem os contornos da disputa que se integra à oferta de outros produtos. Por isso, a música popular não se cansa de estabelecer diálogos com o futebol, fixando a condição de serem partes que se integram.
A reinterpretação do futebol como elemento que se amalgama à cultura bra- sileira tem na intervenção da mestiçagem um termo preponderante. Do mesmo modo, o ritmo sincopado do samba sugere alternâncias de ânimo que se aliam à ginga do futebol como sentido comum. Mais ainda, da mesma maneira que o futebol, o samba incorpora-se ao pacote de manifestações que o Estado legitima. O futebol brasileiro, sem dúvida, mais que o significado pragmático do que pas- sou a ocupar em sua inserção como megaevento mundial, com o aporte das trans- missões pela televisão, tem sua condição de excelência comparável com as frases musicais do samba. As divisões originalíssimas da voz de Moreira da Silva, inter- pretando a já citada Doutor em futebol, integram-se ao sentido comum de um estilo de jogo onde o drible no adversário tem o mesmo efeito burlesco das inter- pretações carregadas de síncopes. Para a efetiva aplicação do que possa represen- tar a integração entre o futebol e o samba, a relação entre Garrincha e Elza Soares não poderia ser mais elucidativa. Um exemplo oportuno diz respeito, anos antes desse encontro, por ocasião da conquista da Copa do Mundo na Suécia, ao lan- çamento da marcha A taça do mundo é nossa (MAUGERI, Wagner, MÜLLER, Lauro, SOBRINHO, Maugeri e DAGÔ, Victor) que, gravada pelo conjunto "Os titulares do ritmo", celebrou o feito inesquecível.
O brasileiro é bom no samba e bom no couro. Além disso, não só ganhamos a taça do mundo, mas demos exibição, sambando com a bola no pé. Daí a ideia que se confirma do futebol brasileiro como sinônimo de espetáculo que conquista admiradores em todo o mundo. A expansão do futebol no plano da eficácia de sua imagem consigna-se, sobretudo, a partir da transmissão ao vivo da Copa do Mundo de 1970. Esse evento, que consolidou definitivamente o prestígio do fute- bol brasileiro, é responsável pela afirmação de nossos jogadores como portadores de um estilo inigualável, caracterizado pelo reinado que Pelé exerceu como maior jogador de futebol de todos os tempos. Ao lado dele, as figuras de Tostão, Gérson, Jairzinho e Rivelino configuram uma excelência que não mais se repetiria. As jogadas imortalizadas, não apenas no México, como nas conquistas anteriores, na Suécia e no Chile, trariam à luz o primado de uma mestiçagem que protagoniza a condição inigualável do futebol brasileiro. A dinâmica imposta pelos tricampeões do mundo tem o mérito de se inserir como acontecimento catalisador do desejo das grandes massas, sobre as quais exerce enorme fascínio.
os últimos instantes do espetáculo
O tricampeonato mundial não teve continuidade vitoriosa. Dos jogadores na par- tida final de 1970, contra a Itália, apenas Jairzinho e Rivelino figuravam entre os titulares da Copa seguinte quando a equipe, entre tropeços, chegaria a um hon- roso quarto lugar, curvando-se à inovação do futebol solidário ou futebol total do Carrossel Holandês, a Laranja Mecânica de Cruyff, Neskens, Krol e Resembrink que encantou o mundo. Daí em diante, o futebol brasileiro amargou duas décadas sem títulos mundiais, quando a geração de Zico, Falcão e Sócrates não concretizou em vitórias as sucessivas campanhas. No plano interno, o regime militar não con- seguiu capitalizar positivamente os dividendos do tricampeonato. Assim, o recém- criado campeonato brasileiro foi paulatinamente aumentando em número de par- ticipantes, chegando a oitenta equipes de todo o país. Esse crescimento exagerado, que atendia aos lances de um xadrez geopolítico que interessava ao regime, resul- tou na descaracterização dos clássicos envolvendo as equipes de maior expressão, que passaram a disputar o torneio com outras sem qualquer tradição. Além disso, o surgimento da loteria esportiva, que envolvia somas milionárias, contava com o gigantismo do torneio nacional como um chamariz à febre das apostas:
A década de 1970 também foi crucial para a consolidação do futebol como mania nacional e também da imagem do Brasil como país do futebol. É a partir desse período que o futebol ultrapassa domínios mais locais – a realização do primeiro campeonato brasileiro de futebol, reunindo clubes de todo o país, só ocorre em 1971 – e se torna, explicitamente, um fator de agenciamento de interesses políticos, econômicos e sociais mais abrangentes. Pela loteria esportiva, por exemplo, criada em junho de 1970, pela popularização da televisão e pelas transmissões de jogos ao vivo – a Copa do México inaugurou a tecnologia das transmissões via satélite –, o futebol se transforma em grande investimento e polo para a obtenção de recursos governamentais e benefícios políticos. (ANTUNES, 2004, p. 290)
O futebol brasileiro, de fato, deu início ao retrocesso do que até então represen- tara seu virtuosismo, na medida em que passou a abrir mão do consagrado estilo para adotar esquemas táticos defensivos, em consonância com o futebol europeu, o que em nada coincide com o espírito de criação original que representa a pre- sença brasileira pelos gramados do mundo. Algumas equipes ainda brilhavam em partidas pela Europa, conquistando torneios de importância. No entanto, o cresci- mento decorrente do milagre econômico, como o idêntico gigantismo do campeo- nato nacional, investiu quantias exorbitantes na construção de estádios de futebol em centros esportivos de menor importância. Esses estádios substituem os campos obsoletos, muitos ainda com arquibancadas de madeira, mas em poucas décadas
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são condenados à mesma obsolescência, transformados em sucata de concreto armado, em inúteis ruínas do desperdício. A isso se deveu a falta de manutenção de administrações que tinham nessas construções apenas o interesse político momen- tâneo. Assim, verificam-se casos de estádios onde as vigas de ferro expostas dão ainda hoje a nota do espetáculo mambembe que se tornou o futebol brasileiro.
O arrasamento de alguns estádios, construídos ou ampliados nos anos do regime militar, cedeu espaços às arenas onde serão disputados os jogos da Copa do Mundo, a exemplo da Fonte Nova, em Salvador, do Machadão, em Natal, e do Vivaldo Almeida, em Manaus. Em alguns destes centros, a exemplo de outros como Cuiabá e Brasília, os campeonatos estaduais são extremamente deficitários, e, quando não há a participação de equipes locais nas elites das séries A e B do campeonato brasileiro, muitas delas aguardam apenas a oportunidade de disputar a Copa do Brasil, mesmo assim em condições de desigualdade com as de maior investimento. Os campeonatos estaduais em todo o país reproduzem modelos ultrapassados que não se ajustam às formas dinâmicas de disputa e provocam o inchaço das competições com equipes inexpressivas. Resulta disso uma enorme capacidade ociosa nas atividades de equipes que já foram tradicionais postulantes a títulos. Muitas dessas equipes, por falta de jogos oficiais, dispensam atletas e comissão técnica, passando vários meses fora das atividades de jogo. Mais ainda, há uma enorme discrepância entre as doze praças esportivas reformadas ou cons- truídas para a Copa do Mundo e grande parte dos estádios por todo o país, muitos dos quais não possuem alvará de funcionamento, sendo os jogos transferidos para outras cidades, ou, por falta de segurança, realizados sem a presença do público.
Se as torcidas organizadas em um país predominantemente mestiço como o Brasil não atiram bananas no gramado, como costumam reagir os torcedores alemães e russos à presença de jogadores negros, e os jogadores já não cobrem o rosto com pó de arroz para disfarçar a cor da pele, a exemplo de Carlos Alberto, do Fluminense, no início do século XX, enfrentamos graves problemas referen- tes aos elevados índices de violência urbana e exclusão social, além da estrutura para a realização de grandes eventos que ainda fica a desejar. Deixando de lado a precariedade da maioria dos estádios brasileiros e olhando apenas para as sedes da Copa do Mudo de 2014, as promessas de uma organização impecável são fala- ciosas. A utilização de alguns desses estádios nos jogos do campeonato brasileiro tem gerado graves imbróglios à manutenção de uma falsa imagem logo em seguida maculada. Episódios envolvendo brigas entre torcidas, ou mesmo entre facções de uma mesma torcida têm ocorrido com a devida cobertura dos meios de comunica- ção. Afinal, "a identidade do indivíduo enquanto torcedor acompanha-o sempre, é parte importante da própria personalidade, ou ao menos funciona como significa-
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tivo reforço dela" (FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 210). O caso mais visível teve lugar no estádio Mané Garrincha, em Brasília, por ocasião da partida entre Vasco da Gama e Corinthians. No violento confronto nas arquibancadas, envolvendo as duas tor- cidas, foi detectada a participação ativa de um reincidente, que já se envolvera no episódio que culminou na morte do torcedor Kevin Douglas Beltrán Espada, atin- gido por um sinalizador, durante a partida entre San José e Corinthians, disputada em Oruro, na Bolívia.
Desse modo, a tentativa de adaptação do futebol brasileiro às exigências inter- nacionais que viabilizariam a realização da Copa do Mundo parece esbarrar na falta de rigor do sistema judiciário e da fiscalização dos órgãos responsáveis pelo com- bate à violência das torcidas, o que se generaliza no país. A condição das leis do país é obrigada a lidar com um conjunto de situações imprevistas no âmbito do que representa a desestrutura do futebol em todo o território brasileiro. O comporta- mento das massas acostumadas a atirar sacos plásticos com urina na torcida adver- sária, o que só reitera a situação de sucateamento dos estádios, cujas instalações sanitárias inexistem, no sentido de atender ao grande público, é um grave problema a ser contornado. O episódio do descontentamento da classe média ascendente, atirando ao gramado da Fonte Nova a caxirola, versão da vuvuzela sul-africana, licenciada pela FIFA como um símbolo que, na sua estreia, já não deu certo, e com o altíssimo aval financeiro do Ministério da Cultura, pode dar a medida do des- compasso que vivem o futebol e a sociedade brasileira. Na verdade, a caxirola, feita de plástico, não representa nada de novo, mas apenas um resgate do caxixi, feito com bambu e pequenas conchas, vendido fartamente nas feiras de Salvador e do Recôncavo Baiano, e utilizado no toque do berimbau, nas rodas de capoeira, que o cantor Carlinhos Brown diz ter inventado. Por sua vez, se a conquista da Copa das Confederações supostamente atenuou o clamor das manifestações populares por todo o país, a exclusão das massas aos novos estádios serve para caracterizar de modo definitivo a ordem mundial que tomou conta do futebol brasileiro:
A época "pós-moderna" do futebol reflete maior hegemonia da classe média sobre a sua cultura; uma crescente mercantilização de suas atividades culturais; e a consequente influência das redes de televisão no controle dos clubes, na organização de torneios e no financiamento do esporte. O futebol entra definitivamente na moda. No Ocidente, ele simboliza uma modernidade avançada e uma entrada para a cultura europeia; no Oriente, ele é um lazer de rigueur entre as novas classes médias. Os "pós-torcedores" da década de 1990 em diante representam um novo e crítico tipo de espectador de futebol, ávido por produzir e consumir uma variedade de mídias de futebol. Rendas televisivas e capitalização de mercado multiplicam os lucros das principais equipes. Na América Latina, os clubes também se tornam empresas privadas a ser compradas e vendidas pelos patrocinadores mais ricos. Os grandes torneios de futebol se tornam grandes
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exposições de negócios. Contratos de televisão e políticas de distribuição de ingressos maximizam a renda, mas ferem os interesses e direitos dos torcedores mais dedicados. (GIULIANOTTI, 2002, p. 215)
Como mais um fator agravante, por imposição da FIFA, desapareceu dos está- dios da Copa do Mundo a área destinada aos torcedores mais pobres, chamada de geral, o que, com a taxação elevada do preço dos ingressos, tende a tornar o futebol novamente um esporte das elites, como o descrevia João do Rio, cem anos atrás. Assim, sem a participação popular, que representou decisivamente a forma de fixação do futebol como esporte ligado à imaginação e ao anseio coletivo, tende a ter modificado o seu significado mais profundo. Com a violência nas grandes cidades, os clássicos no eixo sul-sudeste, ou mesmo nas capitais do nordeste, pas- saram a comprometer o livre acesso do verdadeiro torcedor. O clima de intolerân- cia entre torcidas rivais retoma a situação que Lima Barreto denunciava. Aliás, a violência crescente entre as torcidas brasileiras não possui o mesmo sentido veri- ficado, por exemplo, nas torcidas inglesas, uma vez que "os hooligans se descrevem como praticantes de uma violência virtuosa: nunca atacam espectadores inocentes e jamais usam armas" (FOER, 2005, p. 94). No Brasil, o confronto entre torcidas generalizou-se como prática que se coaduna à crise social e ao crime organizado. Aliadas à fuga do público, que vem progressivamente deixando de ir aos estádios, as transmissões pela televisão aberta ou por assinatura, que impõem às equipes um calendário draconiano de jogos e longas viagens a cada dois dias, contribuem decisivamente com a receita nos gastos com o pagamento de salários elevados dos jogadores, mas concorrem para que o esporte de massas restrinja-se ao âmbito doméstico, afugentando o torcedor de sua maior paixão.
http://www.cla.ufrj.br/images/docs/interfaces/split/20/06. a trajetoria do futebol.pdf
referências bibliográficas
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revista interfaces | número 20 | vol. 1 | janeiro–junho 2014
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Recebido em 29.09.2013 Aceito em 25.11.2013
Valdemar Valente Junior | A trajetória do futebol brasileiro como manifestação das massas...
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